quinta-feira, junho 08, 2006

Um post antigo e especial

O texto a seguir foi um post que salvei a uns dois anos atrás quando comecei a me maravilhar com o mundo (leia-se, as pessoas) dos blogs. Portanto, é mais fácil cola-lo aqui do que achar o link. Leiam e depois eu comento.

Quem Não Lê Não é Humano
ALEXANDRE SOARES SILVA
Alguns anos atrás (calhou de ser alguns anos atrás, mas poderia ter sido ontem, amanhã) vi na esquina da minha casa alguns operários descansando. Eles estavam sentados na grama, sem comer, sem conversar. Como é uma rua quieta, não podiam nem se distrair vendo carros ou pessoas. Olhavam, acho, o muro de tijolos do outro lado da rua, ou talvez alguma rachadura tortuosa na calçada. Estavam assim quando desci a rua no caminho do supermercado, e continuavam assim quando voltei com uma sacolinha na mão. Quando passei andando, olharam fixo pra mim; e eu não os culpo, porque a minha passagem, em contraste com o muro e a rachadura, deve ter tido para eles a importância cerebral que a obra de Aristóteles teve para Santo Tomás. (Um ser humano se mexendo! Óia! O que será que ele tem na sacola, etc.)
Quem não lê está condenado a estar preso num lugar só. Eles não liam, e por isso eram forçados a ficar ali naquela esquina olhando o asfalto. Dez minutos, quinze, meia-hora. Se estivessem lendo, poderiam sair dali, ir para a Samotrácia; mas não liam, e estavam ali, com uma atividade mental provavelmente parecida com a da grama na qual estavam sentados. Quando passei, e o deslocamento do meu corpo criou uma brisa, a atividade mental deles talvez tenha subido drasticamente para o nível de um dente-de-leão sendo despedaçado pelo vento. Mas isso é tudo.
"Ah, Alexandre, que feio, fazendo gozação com os menos favorecidos". Bom, estou fazendo gozação agora, e confesso que acho as classes iletradas (às quais pertencem Jeca Tatu, Popó, Gugu Liberato e Moisés Safra) um tanto engraçadas. Mas na hora fiquei horrorizado. Percebi o que é ser iletrado: é ser forçado a estar onde se está e na companhia em que se está. Como um cupim. Como uma drosophyla melanogaster olhando para uma banana. Como um jogador de futebol olhando para a capa de um livro de auto-ajuda, ou um sindicalista tentando ler Karl Marx.
Quem não lê, no entanto, geralmente se sente superior a quem lê. Se sente mais prático, mais direto. "Me formei na escola da vida". "Não tenho tempo para essas coisas. Trabalho muito. Quando pego um livro pra ler, sinto sono". A sensação que tenho, quando vejo alguém que se sente orgulhoso de não ler, é a que eu teria se fosse convidado para jantar na casa de alguém e, de repente, o anfitrião me mostrasse todo orgulhoso o próprio pênis guardado numa caixinha. "Não tenho tempo pra essas coisas, então mandei remover. Quando tentava usar, pegava no sono". Bom, só posso pensar- azar o seu. Grande parte do prazer da sua vida foi embora.
Mas não me basta dizer que quem não lê é uma espécie de castrado; meu ponto é que ele é um boi castrado. Que pertence a outra espécie. Que uma pessoa assim está para Oscar Wilde como um pé de milho está para um macaco.Está bem, imagine o seguinte: alguém acabou de entrar num clube que existe, digamos, desde a década de cinqüenta. Ele está entrando no salão onde todos os membros estão reunidos. São cerca de cem membros, e estão de pé conversando, em grupos. O novo membro não conhece ninguém; mas digamos que é uma dessas pessoas sociáveis e práticas, e em dez minutos já se apresentou a uns vinte membros, e já guardou o nome de uns dez.
Meu ponto é este: que ele não sabe nada da história do clube. Não sabe que aquele velhinho ali era amigo do fundador (alguns dizem, até, amante); que aqueles dois homens de costas um para o outro brigaram feio na década de setenta, dividindo o clube em dois grupos, que existem até hoje; que a antiga sede era na casa daquela mulher gorda; que em cima daquela mesa (é o que se diz) foi concebido o membro número 96. Se lesse todas as atas do clube, o novo membro saberia disso. Mas, pelo fato de não ter lido, e de não saber nada sobre a história prévia do clube e as correntes invisíveis de amizades e hostilidades que circulam por ali, o novo membro é necessariamente menos membro do clube do que os outros.
Assim no caso do clube, assim no caso do clube mais vasto chamado humanidade. É um clube antigo- o que é mais um motivo para ler as atas. Quem não leu é menos membro do que quem leu. Talvez nem sequer seja membro. Claro, deve ser bem-tratado; que se sente e converse com todo mundo, e em nenhum momento seja humilhado. Mas não é bem um dos nossos, é? E talvez se sentisse mais à vontade – digamos – no clube do pebolim?
Objeção

Mas, pô, Alexandre, você não vê que isso é o que os totalitarismos sempre fizeram- escolher um grupo qualquer e dizer que eles não são humanos, e que portanto podemos fazer o que quisermos com eles?
Resposta

Bom, mas quem é que disse que humanos podem fazer o que quiserem com não-humanos? Quanto a mim, sou definitivamente a favor do anti-vivisseccionismo - que é a doutrina, um tanto fora de moda, de que aqueles que são mais desenvolvidos intelectualmente têm que defender os menos desenvolvidos, e nunca o contrário. Cabe a um anjo, por exemplo, defender um homem; um homem que quisesse defender um anjo estaria cometendo um tremendo faux pas. Esse é um princípio universal, pura e simplesmente - adultos têm que tomar conta de crianças, e se preciso têm também que se sacrificar por elas- e não o contrário. Estendendo esse princípio aos animais: sou definitivamente contra que se façam experiências médicas no José Luis Datena para o benefício da espécie humana; temos obrigação de usarmos nossa inteligência para cuidar dele, e não para fazê-lo sofrer.
Só mais uma coisa, para que não pensem que estou falando de pobres. Não estou falando de pobres. Estou falando de iletrados. Isso inclui a maioria dos ricos do país. Executivos, de modo geral, são como os operários do início deste texto, mas com a seguinte diferença: a rachadura tortuosa na calçada recebeu o nome de Nasdaq, ou de Projeção de Custos para o Segundo Trimestre. Mas a falta de intelectualidade é a mesma.
Ser humano, ao contrário de ser uma joaninha, é uma aquisição cultural. Para ser uma joaninha, basta nascer no corpo de uma joaninha. Mas para ser humano, não basta nascer num corpo humano - como provam os casos de todos esses exemplares de homo ferus que foram criados por lobos ou jaguatiricas. É preciso ler.
Objeção

Você está querendo dizer que a minha avozinha italiana analfabeta, que veio toda miudinha e cheia de garra ganhar a vida no Brasil, não era humana?RespostaÉ. Exatamente.

Eu achei sensacional. Primeiro o assunto, o conteúdo, assino embaixo sem restrições.
Agora quanto a forma. Como o cara escreve bem, muito bem. Tem imaginação (os operários olhando o muro ou as rachaduras da calçada, a humanidade como um grande clube em que sempre chegam novos sócios, vamos ler as atas das reuniões passadas), é radical (Percebi o que é ser iletrado: é ser forçado a estar onde se está e na companhia em que se está. Como um cupim. Como uma drosophyla melanogaster olhando para uma banana. Como um jogador de futebol olhando para a capa de um livro de auto-ajuda, ou um sindicalista tentando ler Karl Marx). Tem humor (o anfitrião que mostra orgulhoso o próprio pênis guardado numa caixinha. "Não tenho tempo pra essas coisas, então mandei remover"), tem ironia e cinismo, quem não gosta? (Você está querendo dizer que a minha avozinha italiana analfabeta, que veio toda miudinha e cheia de garra ganhar a vida no Brasil, não era humana? É. Exatamente). Tem até poesia (Ser humano, ao contrário de ser uma joaninha, é uma aquisição cultural).
Mas acredito que tem muita gente que fica horrorizada ao ler esse texto. Porque?
É um texto contundente. Sem medo de agredir, desde que consiga passar sua mensagem de forma completa e inapelável. Quantos textos semelhantes, falando sobre o mesmo assunto nós já vimos durante nossa vida. Acredito que diversos, mas nenhum com essa pegada virulenta. Quando se tem certeza do valor de uma idéia, muitas vezes a melhor forma de defende-la é pelos excessos. Danem-se as almas sensíveis.
Outra coisa. O cara é famoso na blogsfera, mas igualmente odiado por muitos, talvez por pertencer a um grupo caracterizado como sendo de direita (os wunderblogs). Parece que todos, do grupo, moram com os pais, ou pelo menos com a mãe, e são fãs ardorosos de toddynho. E daí? Ser de direita, originariamente significava ficar, geograficamente, desse lado da mesa diretora, ou algo parecido, na câmara dos lordes de Londres, para defender o status quo da época, enquanto que os reformadores, atendendo as demandas de uma sociedade de massa que se formava, ficavam do outro lado. No inicio era apenas isso. Por esse prisma, hoje em dia o PT é conservador, e o resto do país é de esquerda pois todos parecem querer ‘reformas’. Muito irônico isso. A inteligência não é privilegio de grupos ideológicos, pelo menos dessa fase acho que estamos livres. O que me interessa é a obra da pessoa. Se o cara se dispõe a ser escritor e o faz bem, com certeza vou procurar ler sua obra. Se vai fazer minha cabeça ou não é outra história. Mas não vou deixar de usufruir o prazer da sua leitura por preconceitos. E esse texto não é caso isolado. Entrem no blog do cara pra conferir. Muitos vão acha-lo elitista, dandi, blasé, etc. Mas, com certeza, eu gostaria de escrever como ele. E gostaria que meus amigos de esquerda, seja lá o que isso significa nos dias de hoje, também o fizessem.

5 Comments:

At junho 09, 2006 9:38 AM, Blogger valter ferraz disse...

Depois de uns dias fora ficou prolixo, é?

 
At julho 21, 2006 7:43 PM, Anonymous Anônimo disse...

Greets to the webmaster of this wonderful site! Keep up the good work. Thanks.
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At agosto 13, 2006 12:40 AM, Anonymous Anônimo disse...

This site is one of the best I have ever seen, wish I had one like this.
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At agosto 18, 2006 3:56 AM, Anonymous Anônimo disse...

Looks nice! Awesome content. Good job guys.
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At novembro 21, 2009 4:43 AM, Anonymous Anônimo disse...

o que eu estava procurando, obrigado

 

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